sábado, 8 de outubro de 2016

Cine Palace, por Rafael Galvão

Foto ilustrativa, reprodução do Google.

Cine Palace.
Por Rafael Galvão.

Em janeiro fez 8 anos que o cine Palace, de Aracaju, fechou. Fechou sem alarde, exibindo como último filme o pouco notável “O Prazer de Matar”, filme espanhol de 1996 com Antonio Banderas e Victoria Abril.

O leilão dos bens do cinema aconteceu umas três semanas depois. No rol estavam incluídos algumas centenas de poltronas, um projetor, uma roleta, o balcão de doces que durante décadas funcionou perto da entrada (e que nos últimos anos estava ali apenas como um enfeite quase macabro, remanescente de uma época que passou). Eram apenas apenas lixo imprestável — as poltronas eram desconfortáveis, o projetor era sucata tecnológica e ninguém sabe para que poderia servir o balcão de doces.

Toda uma geração de aracajuanos deve ao cine Palace alguns bons momentos de suas vidas. Essa geração, que hoje conta entre 35 e 60 anos, viveu no Palace os primeiros namoros, gazeou ali aulas, foi tomada de paixão pelo cinema. Lá embaixo, bem perto da tela, ou na última fila do mezzanino, sempre o lugar mais indicado para namorar — essas pessoas certamente guardam boas lembranças daquele que, décadas atrás, foi o cinema mais luxuoso de Aracaju.

Os filmes exibidos no Palace, pelo menos durante o começo da década de 80, atrasavam meses em relação a São Paulo. Em alguns casos o atraso era ainda maior: “Em Algum Lugar do Passado” foi exibido em novembro de 1981 no Cine Tamoio, em Salvador; exatamente um ano depois ele entrava em cartaz no antigo Cine Vitória, que seria o primeiro cinema do centro da cidade a fechar.

Nos seus últimos anos o Palace conseguia uma média de público de 20, 30 pessoas ao dia. Seu fim foi anunciado quando chegaram os primeiros cinemas de shopping. O Palace era deficitário porque sua administração não soube lidar com a concorrência do videocassete e da força de distribuição dos novos cinemas da rede Severiano Ribeiro. Era difícil, mas qualquer empresário com mais visão de mercado saberia arranjar uma solução.

No começo da década de 90, quando o Palace passou a se tornar mero repetidor de filmes exibidos nos cinemas do Shopping Riomar, eu apontei uma solução: diminuir o cinema, criar novas atrações lá dentro — talvez uma espécie de pub, uma livraria, um espaço cultural, em suma — modernizá-lo e torná-lo ponto de encontro de um público mais adulto que não está muito disposto a assistir à matinê nos cinemas do shopping. Uma espécie de centro cultural, como tantos bares em São Paulo, mas ainda melhor. O modelo mais próximo é o do Odeon, no Rio; mas isso foi antes. Os filmes de Woody Allen, por exemplo, que nunca eram exibidos nos cinemas do shopping, poderiam ser exibidos lá. Era uma questão de definir um nicho de mercado e uma estratégia de convivência com a concorrência.

Ninguém jamais me convencerá de que eu estava errado: o sucesso do Cinema de Arte nos cinemas do antigo shopping Riomar, em que o crítico de cinema Ivan Valença aproveitava horários ingratos como as manhãs de sábado para exibir clássicos e filmes mais densos, me deixa com cada dia mais certeza disso.

A melhor idéia que a administração do Palace conseguiu ter foi dividir seus cinemas por públicos específicos e óbvios: o Rio Branco (então o cinema mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo) como central de sacanagem, o Aracaju como ponto de filmes de ação e o Palace como um cinema mais sério para um segmento disposto a assistir reprises do que tinha sido exibido semanas antes pelos cinemas do shopping. Havia também o Plaza, morto há 10 anos para dar lugar a um templo da Igreja Universal, o mais legítimo “poeira” da cidade, com sessões duplas de filmes pornográficos e de artes marciais. Essa divisão de públicos, feita provavelmente por alguém que conseguiu ler dois capítulos inteiros de um livro de marketing, foi destruída pela popularização do videocassete.

Aracaju tem uma característica estranha: costuma queimar etapas no desenvolvimento, passar batido por fases que em cidades mais estruturadas são inevitáveis e que servem para preparar o mercado. O fim do Palace mostrou o que era o futuro e já é o presente dos cinemas em todo o mundo: apenas partes de shopping centers, mais chamarizes de público para lojas e lanchonetes ou parte de um “mix” do que marcos sólidos na vida de uma cidade.

Os cinemas dos centros das cidades têm uma dimensão que salas em shopping centers jamais poderão ter. Fazem parte da vida da cidade, são quase organismos vivos. São também empresas (e o grande mal da administração do Palace foi não ter conseguido enxergar esse clichê), mas, muito mais que isso, são instituições urbanas. E é por isso que o Palace, ao morrer quieto, sem barulho, sem ninguém para chorar o seu passamento, depois de uma agonia de mais de sete anos, pode ser comparado à perda de um órgão pouco necessário.

Para mim, especialmente, o fim do Palace doeu mais. Sempre preferi aquele cinema aos do shopping; nos seus últimos anos essa preferência era ainda maior. A tela era grande, a sensação de grandeza interna não podia ser igualada pelos cinemas de shopping. E como nos últimos anos ele estava às moscas, eu me sentia muito melhor lá; chegava, colocava as pernas nas poltronas da frente, não era obrigado a ouvir gritos de adolescentes histéricos e podia fumar enquanto via o filme.

Minha adolescência foi passada ali; nas épocas em que mais fui ao cinema, era ao Palace que eu ia. Eu gostava dali, me sentia bem vendo filmes, ainda que muito tempo depois deles serem exibidos pelo Shopping Riomar, com toda a tranqüilidade do mundo.

Mas há algo que talvez compense um pouco. O Cine Palace não virou estacionamento, como o Cine Aracaju, ou loja popular, como o Rio Branco. Virou um bingo. E de certa forma, continua fazendo a mesma coisa que fazia em seus tempos de glória: assim como as igrejas evangélicas, continua criando alguns minutos de sonhos e de catarse.

Texto reproduzido do site: rafael.galvao.org/2005/10/cine-palace/

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