Foto ilustrativa, reprodução do Google.
Cine Palace.
Por Rafael Galvão.
Em janeiro fez 8 anos que o cine Palace, de Aracaju, fechou.
Fechou sem alarde, exibindo como último filme o pouco notável “O Prazer de
Matar”, filme espanhol de 1996 com Antonio Banderas e Victoria Abril.
O leilão dos bens do cinema aconteceu umas três semanas
depois. No rol estavam incluídos algumas centenas de poltronas, um projetor,
uma roleta, o balcão de doces que durante décadas funcionou perto da entrada (e
que nos últimos anos estava ali apenas como um enfeite quase macabro,
remanescente de uma época que passou). Eram apenas apenas lixo imprestável — as
poltronas eram desconfortáveis, o projetor era sucata tecnológica e ninguém
sabe para que poderia servir o balcão de doces.
Toda uma geração de aracajuanos deve ao cine Palace alguns
bons momentos de suas vidas. Essa geração, que hoje conta entre 35 e 60 anos,
viveu no Palace os primeiros namoros, gazeou ali aulas, foi tomada de paixão
pelo cinema. Lá embaixo, bem perto da tela, ou na última fila do mezzanino,
sempre o lugar mais indicado para namorar — essas pessoas certamente guardam
boas lembranças daquele que, décadas atrás, foi o cinema mais luxuoso de
Aracaju.
Os filmes exibidos no Palace, pelo menos durante o começo da
década de 80, atrasavam meses em relação a São Paulo. Em alguns casos o atraso
era ainda maior: “Em Algum Lugar do Passado” foi exibido em novembro de 1981 no
Cine Tamoio, em Salvador; exatamente um ano depois ele entrava em cartaz no
antigo Cine Vitória, que seria o primeiro cinema do centro da cidade a fechar.
Nos seus últimos anos o Palace conseguia uma média de
público de 20, 30 pessoas ao dia. Seu fim foi anunciado quando chegaram os
primeiros cinemas de shopping. O Palace era deficitário porque sua
administração não soube lidar com a concorrência do videocassete e da força de
distribuição dos novos cinemas da rede Severiano Ribeiro. Era difícil, mas
qualquer empresário com mais visão de mercado saberia arranjar uma solução.
No começo da década de 90, quando o Palace passou a se
tornar mero repetidor de filmes exibidos nos cinemas do Shopping Riomar, eu
apontei uma solução: diminuir o cinema, criar novas atrações lá dentro — talvez
uma espécie de pub, uma livraria, um espaço cultural, em suma — modernizá-lo e
torná-lo ponto de encontro de um público mais adulto que não está muito
disposto a assistir à matinê nos cinemas do shopping. Uma espécie de centro
cultural, como tantos bares em São Paulo, mas ainda melhor. O modelo mais
próximo é o do Odeon, no Rio; mas isso foi antes. Os filmes de Woody Allen, por
exemplo, que nunca eram exibidos nos cinemas do shopping, poderiam ser exibidos
lá. Era uma questão de definir um nicho de mercado e uma estratégia de
convivência com a concorrência.
Ninguém jamais me convencerá de que eu estava errado: o
sucesso do Cinema de Arte nos cinemas do antigo shopping Riomar, em que o
crítico de cinema Ivan Valença aproveitava horários ingratos como as manhãs de
sábado para exibir clássicos e filmes mais densos, me deixa com cada dia mais
certeza disso.
A melhor idéia que a administração do Palace conseguiu ter
foi dividir seus cinemas por públicos específicos e óbvios: o Rio Branco (então
o cinema mais antigo do Brasil em funcionamento contínuo) como central de
sacanagem, o Aracaju como ponto de filmes de ação e o Palace como um cinema
mais sério para um segmento disposto a assistir reprises do que tinha sido
exibido semanas antes pelos cinemas do shopping. Havia também o Plaza, morto há
10 anos para dar lugar a um templo da Igreja Universal, o mais legítimo
“poeira” da cidade, com sessões duplas de filmes pornográficos e de artes
marciais. Essa divisão de públicos, feita provavelmente por alguém que
conseguiu ler dois capítulos inteiros de um livro de marketing, foi destruída
pela popularização do videocassete.
Aracaju tem uma característica estranha: costuma queimar
etapas no desenvolvimento, passar batido por fases que em cidades mais
estruturadas são inevitáveis e que servem para preparar o mercado. O fim do
Palace mostrou o que era o futuro e já é o presente dos cinemas em todo o
mundo: apenas partes de shopping centers, mais chamarizes de público para lojas
e lanchonetes ou parte de um “mix” do que marcos sólidos na vida de uma cidade.
Os cinemas dos centros das cidades têm uma dimensão que
salas em shopping centers jamais poderão ter. Fazem parte da vida da cidade,
são quase organismos vivos. São também empresas (e o grande mal da
administração do Palace foi não ter conseguido enxergar esse clichê), mas,
muito mais que isso, são instituições urbanas. E é por isso que o Palace, ao
morrer quieto, sem barulho, sem ninguém para chorar o seu passamento, depois de
uma agonia de mais de sete anos, pode ser comparado à perda de um órgão pouco
necessário.
Para mim, especialmente, o fim do Palace doeu mais. Sempre
preferi aquele cinema aos do shopping; nos seus últimos anos essa preferência
era ainda maior. A tela era grande, a sensação de grandeza interna não podia
ser igualada pelos cinemas de shopping. E como nos últimos anos ele estava às
moscas, eu me sentia muito melhor lá; chegava, colocava as pernas nas poltronas
da frente, não era obrigado a ouvir gritos de adolescentes histéricos e podia
fumar enquanto via o filme.
Minha adolescência foi passada ali; nas épocas em que mais
fui ao cinema, era ao Palace que eu ia. Eu gostava dali, me sentia bem vendo
filmes, ainda que muito tempo depois deles serem exibidos pelo Shopping Riomar,
com toda a tranqüilidade do mundo.
Mas há algo que talvez compense um pouco. O Cine Palace não
virou estacionamento, como o Cine Aracaju, ou loja popular, como o Rio Branco.
Virou um bingo. E de certa forma, continua fazendo a mesma coisa que fazia em
seus tempos de glória: assim como as igrejas evangélicas, continua criando
alguns minutos de sonhos e de catarse.
Texto reproduzido do site: rafael.galvao.org/2005/10/cine-palace/
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