sexta-feira, 9 de junho de 2017

Pesquisador salva pedaços do cinema brasileiro

FÃ DE FATO - Jurandyr Noronha e sua câmera Prévost,
 de 1911. Ele passou 73 anos recuperando pedaços de filmes.

CARTAZ - Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. 
E a matriz foi para o lixo...

 CHOQUE - Nelson fala sobre a Cinemateca: 
Mataram todos os meus filmes”. (André Valentin).

PRISÃO - Alzira Alves vive Olga Breno, o rosto da angústia
 em Limite. Ela se achou famosa aos 80 anos. (Mônica Imbuzeiro).

Publicado originalmente na revista Época, em 24 de abril de 2009.

Pesquisador salva pedaços do cinema brasileiro.

O cinéfilo Jurandyr Noronha resgatou clássicos dos anos 20 aos 60 e tornou a aventura uma obra de referência essencial.

Por Norma Couri.

O cadáver do personagem Joe Gillis boiando na piscina da ex-atriz de filmes mudos Norma Desmond é um símbolo do impacto causado pelo surgimento do cinema falado. “Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos”, afirma a decadente Norma (Gloria Swanson) para o fracassado Joe (William Holden) em Crepúsculo dos deuses, clássico de Billy Wilder, de 1950. Nos Estados Unidos, os filmes podem ter ficado “pequenos”. No Brasil, onde quase vingou uma Hollywood tropical nos anos 40 e 50, eles eclipsaram, apagados pelo fogo, pelo fungo ou pelo desleixo.

A surpresa é descobrir quantos desapareceram, e isso só a obsessão de um fanático por cinema como Jurandyr Noronha pode desvendar. Cineasta, escritor, pesquisador, ele passou 73 de seus 93 anos mergulhado em celuloides, moviolas, vitafones, movietones, escavando relíquias nas latas de lixo de estúdios falidos e perseguindo no chão das feiras dos bairros de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, ou do Bexiga, em São Paulo, câmeras como a francesa Prévost, de 1911, que decora sua sala. Foi das poucas que sobraram do Museu do Cinema Brasileiro que ele mantinha em casa, até doá-lo para o Museu de Arte Moderna (MAM) carioca. Lá, o tesouro foi dilapidado, e seus restos transferidos para os estúdios da Cinédia, no Rio de Janeiro. Jurandyr lança nesta semana um presente para os cinéfilos. Dicionário De Cinema Brasileiro – De 1896 A 1936, Do Nascimento Ao Sonoro (editora EMC, 454 páginas, R$ 60) traz quase 2.500 verbetes que o diretor Nelson Pereira dos Santos qualifica de “o DNA de nosso cinema” (leia a polêmica entre Nelson e a Cinemateca Brasileira na terceira página).

Quantos sobraram? “Poucos, muito poucos”, diz Jurandyr. “Jorge Ileli (cineasta e roteirista) disse que, se eu não tivesse salvado em imagem uma sequência de seu filme Mulheres e milhões, não teria sobrado nada.” São eletrizantes 13 minutos de filme noir, ação e suspense sem nenhum diálogo, o melhor do policial brasileiro em preto e branco, que levou nove anos para ser concluído, em 1961. Outra preciosidade do cinema falado salva por Jurandyr é um trecho de Bonequinha de seda (1935), de Oduvaldo Vianna, que introduziu a grua no Brasil e foi o primeiro a usar retroprojeção – uma tela simulava o trânsito da rua no vidro traseiro do carro que aparecia no filme. E um trecho de Ganga bruta, de Humberto Mauro, que causava frisson em 1933 na cena em que o vestido da atriz Déa Selva era rasgado pelos galhos do campo, deixando à mostra seu joelho roliço e suas pernas grossas.

No Dicionário, é qualificado de “expressionista que vira western em cena de pancadaria no melhor John Ford e cresce para o clássico russo com conotações erótico-freudianas, o chamado Freud de Cascadura”. Definição mais substanciosa que a do Dictionnaire des films, do historiador francês George Sadoul, que qualifica o roteiro de absurdo, mas chama o filme de “obra-prima, sonorizada em discos, não contendo uma palavra de diálogo”. Jurandyr também salvou em película um trecho de Exemplo regenerador, de José Medina, de 1919.

Dicionário revela o começo da paixão de Jurandyr, eletrizado pela descoberta casual, em 1964, de uma película com o voo de Santos Dumont no 14 Bis. Ao “tesouro”, Jurandyr deu o título de Uma alegria selvagem, homenagem ao poema do pioneiro da aviação: “Lá no alto, na solidão negra... eu me sentia como parte integrante da própria tempestade, dominava meus nervos uma alegria selvagem”. Não fosse a curiosidade de Jurandyr por umas latas enferrujadas debaixo da moviola, a alegria de Santos Dumont teria virado pó. “O melhor de nosso cinema era jogado fora”, diz.

Tal qual o projecionista Alfredo em Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, Jurandyr fez em 1979 a comovente montagem de filmes salvos do incêndio no DVD histórico Panorama do cinema brasileiro, vendido pela Funarte – se ainda existisse algum para venda. Ali estão a estreia do cinegrafista Edgar Brasil numa cena de Brasa dormida (1929), de Humberto Mauro, e uma sequência de Noite vazia, em que Norma Bengell se vê menina e mulher. “É uma segunda montagem substituindo a cena de amor entre Norma e Odete Lara escolhida pelo crítico Moniz Vianna. Na pré-estreia, a sequência chocou tanto a mulher do então ministro da Educação, Tarso Dutra, que tiveram de abortá-la”, afirma.

O cinema mudo morreu em 1930. Em 1929, o Brasil foi surpreendido, em plena Grande Depressão americana, por vozes em Alta traição, de Ernst Lubitsch. E viu, no mesmo ano, plateias pasmadas com o primeiro filme brasileiro falado, Acabaram-se os otários, de Luís de Barros – reconstituição cinematográfica da piada do mineiro que comprou um bonde, glorificação do caipira paulista.

SAIBA MAIS.

Daí para os estúdios da Vera Cruz, no início dos anos 50, foi um arranque só. Tivemos nossos momentos de Hollywood depois da vinda do diretor Alberto Cavalcanti de Londres trazendo os técnicos dos estúdios Ealing, desempregados na Europa pós-guerra. “Caiçara, primeiro filme da Vera Cruz dirigido por Cavalcanti, não tem comparação técnica com outras produções, e não fosse essa lufada estrangeira jamais teríamos levado o prêmio em Cannes em 1953, com O cangaceiro (de Lima Barreto), ou a Palma de Ouro em 1962, com O pagador de promessas (de Anselmo Duarte).”

Eram tantos estúdios que quase acreditamos que o cinema deslancharia no Brasil. A Vera Cruz contrapunha em São Paulo, num estúdio industrializado e “cinema sério”, as popularíssimas chanchadas cariocas da Atlântida costuradas em fundos de galpões mambembes, sem preservação. Entre um e outro surgiram Cinédia, primeiro estúdio construído especialmente para esse fim em São Cristóvão, Multifilmes, Maristela, Kino Filmes... Nenhum sobrou, e o Cinema Novo veio resgatar um cinema fadado ao fracasso. “Também não sobraram os cinemas da Cinelândia, maior complexo cinematográfico do país nos anos 20, inaugurado por Francisco Serrador. Ele montou o primeiro estúdio industrial do Brasil em São Paulo, mas inaugurou oito cinemas no Rio – o Vitória virou igreja, o Plaza e o Metro fecharam, ficou o Odeon, com patrocinío da Petrobras...”

Ficou também o Dicionário de Jurandyr, em que se aprende que no mutoscópio um espectador de cada vez espiava o filme; que em A cabana do Pae Tomaz Antonio Serra fez em 1909 uma embrulhada misturando a escravidão americana com a brasileira; que O guarany teve sete versões e O crime da mala outras tantas; que Cavalleiro negro, de Luís de Barros, inovou um playback improvisado em 1923 fazendo atores repetir as mímicas com falas mais ou menos acertadas de sincronia; e Limite (1931), único filme de Mário Peixoto, que oscilava entre a avant-garde francesa e o expressionismo alemão, virou um clássico sem nunca ter sido exibido comercialmente. “Nenhum exibidor queria, achavam que o público não suportaria.”

Até a metade do século passado, o Brasil tinha produzido 400 filmes, a maior parte perdida. “O musical Allô! Allô! Brasil!, de 1935, não existe mais, mas Allô! Allô! Carnaval!, de Adhemar Gonzaga, com Carmen e Aurora Miranda cantando ‘Cantoras do rádio’, sobrou, quase inteiro...”, diz Jurandyr, lamentando a seletividade que não salvou filmes que tratavam da vacina obrigatória, da peste bubônica ou do mata-mosquitos. Filmes coloridos com banhos de anilina, temas reincidentes sobre milagres, revoluções. Enigmas como o filme de 1897 Ponto de linha dos bonds de Botafogo vendo-se os passageiros subir e descer, entre outros com títulos inacreditáveis como A esposa do solteiro, Filho sem mãe, Va-te con la outra, Sofrer para gozar, Tui-tui-tui-tui-Zi-zi-zi.

Jurandyr reuniu em longas, médias ou curtas-metragens vários filmes de pesquisa. Foram Cômicos + cômicos, em 1971, 70 anos de Brasil, em 1974, Pioneiros do cinema brasileiro, em 1997. Fez 34 documentários, muitos produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema. Publicou três livros e organizou exposições. Junto com esse Dicionário, publica suas memórias em O momento mágico. Não cansou. Quer fazer um making of dos “cantantes e falantes”, gênero que durava o tempo de uma canção, com dubladores atrás de uma tela transparente “falando” pelos atores do filme projetado para a plateia do outro lado. “Era uma parafernália de megafones e ruídos que não acabava mais. Não sobrou nenhum.”

O que o Dicionário não conseguiu resolver foi a briga entre Rio e Petrópolis sobre qual foi o primeiro filme brasileiro: a Imagem da Baía de Guanabara, em 1898, ou a chegada do trem a Petrópolis, que teria sido feita um ano antes. “Ambos rodados com omniógrafo e bobinas de 60 metros movidos a manivela. Aposto nas cenas da Baía de Guanabara...”

------------------------------------------------------------------------------------

Nelson Pereira dos Santos não perdoa a Cinemateca Brasileira por ter, segundo ele, defenestrado a matriz de Rio, 40 graus, lançado e censurado em 1955. Para se defender, o diretor da Cinemateca, Carlos Magalhães, aponta o lote de 8 mil latas de filmes da Atlântida trazidas do Arquivo Nacional que chegaram à Cinemateca no ano passado, somando-se aos 35 mil títulos que incluem a produção da Vera Cruz.

“Está vendo isso?”, Magalhães mostra a foto da mancha amorfa em que se transformou um dos títulos raros da Atlântida. “É a síndrome do vinagre. A fita está cheia de perfurações, oxidações, vai contaminar os rolos bons. Quando o filme chega a esse estado, não há o que fazer. E são muitos, porque naquela época nenhum cineasta pensava em conservação. Eu brinco dizendo que, se a fita fosse tela, os cineastas já teriam pintado de branco para servir de base para outro quadro. Ainda bem que o filme só pode ser sensibilizado pela luz uma única vez.”

Magalhães diz que a Cinemateca recebe cadáveres. “O melhor a fazer é copiar e salvar as imagens como der, transpor o suporte deteriorado para outro, extirpar a doença. Foi o que aconteceu com Rio, 40 graus. Nelson tem uma visão equivocada. Uma parte da produção cinematográfica se perdeu entre 1915 e 1920. Perdemos 93% dos filmes. Limite, de Mario Peixoto, se salvou pela ação conjunta de várias pessoas (Saulo Pereira de Mello e Plínio Sussekind Rocha). A Cinemateca tem um dos maiores laboratórios de restauração do país. A matriz de Rio, 40 graus estava marcada para morrer, não foi guardada nas condições ótimas de 10 a 35 graus e umidade relativa. Sofreu variações ambientais bruscas, precisou ser descartada em várias épocas e trechos para salvar outros. Mas isso só depois que se preservou o filme, qualquer um pode assistir a uma cópia, que permite cópias.” Magalhães distingue o filme da obra de arte única de um museu. “Filme é a arte da copiagem.”

Assim mesmo Nelson não perdoa. Faz alusão ao Matadouro Municipal que ocupava o local onde hoje existe a Cinemateca. “Ali continua sendo um matadouro: mataram todos os meus filmes. Levei meu acervo para o Arquivo Nacional.”

------------------------------------------------------------------------------------------- 

A única sobrevivente de Limite morreu em outubro de 2000, aos 89 anos, quase sem entender o sucesso do filme que protagonizou. Alzira Alves tinha 18 anos, era balconista da loja de chocolates Bhering, do primo de Mário Peixoto, e de uma hora para outra teve de escolher entre o pseudônimo Luba Laje e Olga Breno. Foi com o segundo que virou o rosto que abre o filme, com duas mãos masculinas algemadas.

“Tem beijo?”, perguntou a mãe, nascida em Trás-os-Montes, em Portugal. Ela respondeu que não. Mesmo assim só teve o consentimento para virar estrela com o irmão acompanhando cena por cena. “O diretor tinha 22 anos, eu não entendia patavina do que ele dizia, mas obedecia”, respondeu a atriz em entrevista feita no Rio, um ano antes de sua morte.

Só quatro anos antes de morrer, durante um ciclo de palestras da Casa Laura Alvim, no Rio, ela entendeu. “Eu era angústia, prisão, confinada num barquinho em Mangaratiba onde o tio de Mário Peixoto era prefeito, apavorada porque não sabia nadar.”

O primo liberava a balconista, mas pagava o salário. Mário Peixoto, apenas vestidos. “Mas era um gentleman, e minha carreira teria prosseguido se ele não tivesse brigado com a Carmem Santos (atriz e produtora).” Foi durante a rodagem de Onde a terra acaba, inacabado, em que Alzira/Olga repetiu 46 vezes a cena em que era esbofeteada sem dublê. Quase 60 anos depois, em 1988, os dois se encontraram na inauguração do Centro Cultural Mário Peixoto, em Mangaratiba. Ficaram se olhando, até Alzira cochichar para o diretor: “Mário, eu não sabia que era tão famosa”.

Texto e imagens reproduzidos do site: revistaepoca.globo.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário