FÃ DE FATO - Jurandyr Noronha e sua câmera Prévost,
de 1911. Ele passou 73 anos recuperando pedaços de filmes.
de 1911. Ele passou 73 anos recuperando pedaços de filmes.
CARTAZ - Rio, 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos.
E a matriz foi para o lixo...
CHOQUE - Nelson fala sobre a Cinemateca:
Mataram todos os meus filmes”. (André Valentin).
Mataram todos os meus filmes”. (André Valentin).
PRISÃO - Alzira Alves vive Olga Breno, o rosto da angústia
em Limite. Ela se achou famosa aos 80 anos. (Mônica Imbuzeiro).
em Limite. Ela se achou famosa aos 80 anos. (Mônica Imbuzeiro).
Publicado originalmente na revista Época, em 24 de abril de 2009.
Pesquisador salva pedaços do cinema brasileiro.
O cinéfilo Jurandyr Noronha resgatou clássicos dos anos 20
aos 60 e tornou a aventura uma obra de referência essencial.
Por Norma Couri.
O cadáver do personagem Joe Gillis boiando na piscina da
ex-atriz de filmes mudos Norma Desmond é um símbolo do impacto causado pelo
surgimento do cinema falado. “Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos”,
afirma a decadente Norma (Gloria Swanson) para o fracassado Joe (William
Holden) em Crepúsculo dos deuses, clássico de Billy Wilder, de 1950. Nos
Estados Unidos, os filmes podem ter ficado “pequenos”. No Brasil, onde quase
vingou uma Hollywood tropical nos anos 40 e 50, eles eclipsaram, apagados pelo
fogo, pelo fungo ou pelo desleixo.
A surpresa é descobrir quantos desapareceram, e isso só a
obsessão de um fanático por cinema como Jurandyr Noronha pode desvendar.
Cineasta, escritor, pesquisador, ele passou 73 de seus 93 anos mergulhado em
celuloides, moviolas, vitafones, movietones, escavando relíquias nas latas de
lixo de estúdios falidos e perseguindo no chão das feiras dos bairros de São
Cristóvão, no Rio de Janeiro, ou do Bexiga, em São Paulo, câmeras como a
francesa Prévost, de 1911, que decora sua sala. Foi das poucas que sobraram do
Museu do Cinema Brasileiro que ele mantinha em casa, até doá-lo para o Museu de
Arte Moderna (MAM) carioca. Lá, o tesouro foi dilapidado, e seus restos
transferidos para os estúdios da Cinédia, no Rio de Janeiro. Jurandyr lança
nesta semana um presente para os cinéfilos. Dicionário De Cinema Brasileiro –
De 1896 A 1936, Do Nascimento Ao Sonoro (editora EMC, 454 páginas, R$ 60) traz
quase 2.500 verbetes que o diretor Nelson Pereira dos Santos qualifica de “o
DNA de nosso cinema” (leia a polêmica entre Nelson e a Cinemateca Brasileira na
terceira página).
Quantos sobraram? “Poucos, muito poucos”, diz Jurandyr.
“Jorge Ileli (cineasta e roteirista) disse que, se eu não tivesse salvado em
imagem uma sequência de seu filme Mulheres e milhões, não teria sobrado nada.”
São eletrizantes 13 minutos de filme noir, ação e suspense sem nenhum diálogo,
o melhor do policial brasileiro em preto e branco, que levou nove anos para ser
concluído, em 1961. Outra preciosidade do cinema falado salva por Jurandyr é um
trecho de Bonequinha de seda (1935), de Oduvaldo Vianna, que introduziu a grua
no Brasil e foi o primeiro a usar retroprojeção – uma tela simulava o trânsito
da rua no vidro traseiro do carro que aparecia no filme. E um trecho de Ganga
bruta, de Humberto Mauro, que causava frisson em 1933 na cena em que o vestido
da atriz Déa Selva era rasgado pelos galhos do campo, deixando à mostra seu
joelho roliço e suas pernas grossas.
No Dicionário, é qualificado de “expressionista que vira
western em cena de pancadaria no melhor John Ford e cresce para o clássico
russo com conotações erótico-freudianas, o chamado Freud de Cascadura”.
Definição mais substanciosa que a do Dictionnaire des films, do historiador
francês George Sadoul, que qualifica o roteiro de absurdo, mas chama o filme de
“obra-prima, sonorizada em discos, não contendo uma palavra de diálogo”.
Jurandyr também salvou em película um trecho de Exemplo regenerador, de José
Medina, de 1919.
Dicionário revela o começo da paixão de Jurandyr, eletrizado
pela descoberta casual, em 1964, de uma película com o voo de Santos Dumont no
14 Bis. Ao “tesouro”, Jurandyr deu o título de Uma alegria selvagem, homenagem
ao poema do pioneiro da aviação: “Lá no alto, na solidão negra... eu me sentia
como parte integrante da própria tempestade, dominava meus nervos uma alegria
selvagem”. Não fosse a curiosidade de Jurandyr por umas latas enferrujadas
debaixo da moviola, a alegria de Santos Dumont teria virado pó. “O melhor de
nosso cinema era jogado fora”, diz.
Tal qual o projecionista Alfredo em Cinema Paradiso, de
Giuseppe Tornatore, Jurandyr fez em 1979 a comovente montagem de filmes salvos
do incêndio no DVD histórico Panorama do cinema brasileiro, vendido pela
Funarte – se ainda existisse algum para venda. Ali estão a estreia do
cinegrafista Edgar Brasil numa cena de Brasa dormida (1929), de Humberto Mauro,
e uma sequência de Noite vazia, em que Norma Bengell se vê menina e mulher. “É
uma segunda montagem substituindo a cena de amor entre Norma e Odete Lara
escolhida pelo crítico Moniz Vianna. Na pré-estreia, a sequência chocou tanto a
mulher do então ministro da Educação, Tarso Dutra, que tiveram de abortá-la”,
afirma.
O cinema mudo morreu em 1930. Em 1929, o Brasil foi surpreendido,
em plena Grande Depressão americana, por vozes em Alta traição, de Ernst
Lubitsch. E viu, no mesmo ano, plateias pasmadas com o primeiro filme
brasileiro falado, Acabaram-se os otários, de Luís de Barros – reconstituição
cinematográfica da piada do mineiro que comprou um bonde, glorificação do
caipira paulista.
SAIBA MAIS.
Daí para os estúdios da Vera Cruz, no início dos anos 50,
foi um arranque só. Tivemos nossos momentos de Hollywood depois da vinda do
diretor Alberto Cavalcanti de Londres trazendo os técnicos dos estúdios Ealing,
desempregados na Europa pós-guerra. “Caiçara, primeiro filme da Vera Cruz
dirigido por Cavalcanti, não tem comparação técnica com outras produções, e não
fosse essa lufada estrangeira jamais teríamos levado o prêmio em Cannes em
1953, com O cangaceiro (de Lima Barreto), ou a Palma de Ouro em 1962, com O
pagador de promessas (de Anselmo Duarte).”
Eram tantos estúdios que quase acreditamos que o cinema
deslancharia no Brasil. A Vera Cruz contrapunha em São Paulo, num estúdio
industrializado e “cinema sério”, as popularíssimas chanchadas cariocas da
Atlântida costuradas em fundos de galpões mambembes, sem preservação. Entre um
e outro surgiram Cinédia, primeiro estúdio construído especialmente para esse
fim em São Cristóvão, Multifilmes, Maristela, Kino Filmes... Nenhum sobrou, e o
Cinema Novo veio resgatar um cinema fadado ao fracasso. “Também não sobraram os
cinemas da Cinelândia, maior complexo cinematográfico do país nos anos 20,
inaugurado por Francisco Serrador. Ele montou o primeiro estúdio industrial do
Brasil em São Paulo, mas inaugurou oito cinemas no Rio – o Vitória virou
igreja, o Plaza e o Metro fecharam, ficou o Odeon, com patrocinío da
Petrobras...”
Ficou também o Dicionário de Jurandyr, em que se aprende que
no mutoscópio um espectador de cada vez espiava o filme; que em A cabana do Pae
Tomaz Antonio Serra fez em 1909 uma embrulhada misturando a escravidão
americana com a brasileira; que O guarany teve sete versões e O crime da mala
outras tantas; que Cavalleiro negro, de Luís de Barros, inovou um playback
improvisado em 1923 fazendo atores repetir as mímicas com falas mais ou menos
acertadas de sincronia; e Limite (1931), único filme de Mário Peixoto, que
oscilava entre a avant-garde francesa e o expressionismo alemão, virou um
clássico sem nunca ter sido exibido comercialmente. “Nenhum exibidor queria,
achavam que o público não suportaria.”
Até a metade do século passado, o Brasil tinha produzido 400
filmes, a maior parte perdida. “O musical Allô! Allô! Brasil!, de 1935, não
existe mais, mas Allô! Allô! Carnaval!, de Adhemar Gonzaga, com Carmen e Aurora
Miranda cantando ‘Cantoras do rádio’, sobrou, quase inteiro...”, diz Jurandyr,
lamentando a seletividade que não salvou filmes que tratavam da vacina
obrigatória, da peste bubônica ou do mata-mosquitos. Filmes coloridos com
banhos de anilina, temas reincidentes sobre milagres, revoluções. Enigmas como
o filme de 1897 Ponto de linha dos bonds de Botafogo vendo-se os passageiros
subir e descer, entre outros com títulos inacreditáveis como A esposa do
solteiro, Filho sem mãe, Va-te con la outra, Sofrer para gozar,
Tui-tui-tui-tui-Zi-zi-zi.
Jurandyr reuniu em longas, médias ou curtas-metragens vários
filmes de pesquisa. Foram Cômicos + cômicos, em 1971, 70 anos de Brasil, em
1974, Pioneiros do cinema brasileiro, em 1997. Fez 34 documentários, muitos
produzidos pelo Instituto Nacional de Cinema. Publicou três livros e organizou
exposições. Junto com esse Dicionário, publica suas memórias em O momento
mágico. Não cansou. Quer fazer um making of dos “cantantes e falantes”, gênero
que durava o tempo de uma canção, com dubladores atrás de uma tela transparente
“falando” pelos atores do filme projetado para a plateia do outro lado. “Era
uma parafernália de megafones e ruídos que não acabava mais. Não sobrou
nenhum.”
O que o Dicionário não conseguiu resolver foi a briga entre
Rio e Petrópolis sobre qual foi o primeiro filme brasileiro: a Imagem da Baía
de Guanabara, em 1898, ou a chegada do trem a Petrópolis, que teria sido feita
um ano antes. “Ambos rodados com omniógrafo e bobinas de 60 metros movidos a
manivela. Aposto nas cenas da Baía de Guanabara...”
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Nelson Pereira dos Santos não perdoa a Cinemateca Brasileira
por ter, segundo ele, defenestrado a matriz de Rio, 40 graus, lançado e
censurado em 1955. Para se defender, o diretor da Cinemateca, Carlos Magalhães,
aponta o lote de 8 mil latas de filmes da Atlântida trazidas do Arquivo
Nacional que chegaram à Cinemateca no ano passado, somando-se aos 35 mil
títulos que incluem a produção da Vera Cruz.
“Está vendo isso?”, Magalhães mostra a foto da mancha amorfa
em que se transformou um dos títulos raros da Atlântida. “É a síndrome do
vinagre. A fita está cheia de perfurações, oxidações, vai contaminar os rolos
bons. Quando o filme chega a esse estado, não há o que fazer. E são muitos,
porque naquela época nenhum cineasta pensava em conservação. Eu brinco dizendo
que, se a fita fosse tela, os cineastas já teriam pintado de branco para servir
de base para outro quadro. Ainda bem que o filme só pode ser sensibilizado pela
luz uma única vez.”
Magalhães diz que a Cinemateca recebe cadáveres. “O melhor a
fazer é copiar e salvar as imagens como der, transpor o suporte deteriorado
para outro, extirpar a doença. Foi o que aconteceu com Rio, 40 graus. Nelson
tem uma visão equivocada. Uma parte da produção cinematográfica se perdeu entre
1915 e 1920. Perdemos 93% dos filmes. Limite, de Mario Peixoto, se salvou pela
ação conjunta de várias pessoas (Saulo Pereira de Mello e Plínio Sussekind
Rocha). A Cinemateca tem um dos maiores laboratórios de restauração do país. A
matriz de Rio, 40 graus estava marcada para morrer, não foi guardada nas
condições ótimas de 10 a 35 graus e umidade relativa. Sofreu variações
ambientais bruscas, precisou ser descartada em várias épocas e trechos para
salvar outros. Mas isso só depois que se preservou o filme, qualquer um pode
assistir a uma cópia, que permite cópias.” Magalhães distingue o filme da obra
de arte única de um museu. “Filme é a arte da copiagem.”
Assim mesmo Nelson não perdoa. Faz alusão ao Matadouro
Municipal que ocupava o local onde hoje existe a Cinemateca. “Ali continua
sendo um matadouro: mataram todos os meus filmes. Levei meu acervo para o
Arquivo Nacional.”
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A única sobrevivente de Limite morreu em outubro de 2000,
aos 89 anos, quase sem entender o sucesso do filme que protagonizou. Alzira
Alves tinha 18 anos, era balconista da loja de chocolates Bhering, do primo de
Mário Peixoto, e de uma hora para outra teve de escolher entre o pseudônimo
Luba Laje e Olga Breno. Foi com o segundo que virou o rosto que abre o filme,
com duas mãos masculinas algemadas.
“Tem beijo?”, perguntou a mãe, nascida em Trás-os-Montes, em
Portugal. Ela respondeu que não. Mesmo assim só teve o consentimento para virar
estrela com o irmão acompanhando cena por cena. “O diretor tinha 22 anos, eu
não entendia patavina do que ele dizia, mas obedecia”, respondeu a atriz em
entrevista feita no Rio, um ano antes de sua morte.
Só quatro anos antes de morrer, durante um ciclo de
palestras da Casa Laura Alvim, no Rio, ela entendeu. “Eu era angústia, prisão,
confinada num barquinho em Mangaratiba onde o tio de Mário Peixoto era
prefeito, apavorada porque não sabia nadar.”
O primo liberava a balconista, mas pagava o salário. Mário
Peixoto, apenas vestidos. “Mas era um gentleman, e minha carreira teria
prosseguido se ele não tivesse brigado com a Carmem Santos (atriz e
produtora).” Foi durante a rodagem de Onde a terra acaba, inacabado, em que
Alzira/Olga repetiu 46 vezes a cena em que era esbofeteada sem dublê. Quase 60
anos depois, em 1988, os dois se encontraram na inauguração do Centro Cultural
Mário Peixoto, em Mangaratiba. Ficaram se olhando, até Alzira cochichar para o
diretor: “Mário, eu não sabia que era tão famosa”.
Texto e imagens reproduzidos do site: revistaepoca.globo.com
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